Finalmente está entre nós a nova investigação de Benoit Blanc, e dessa vez ela ainda conta com um padre gato no centro do mistério. Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out já estreou na Netflix e se consolida como um dos filmes mais interessantes da franquia.

O detetive Benoit Blanc se une a um jovem padre para investigar um crime impossível ocorrido dentro da igreja de uma cidadezinha marcada por um passado sombrio. Um cenário que, à primeira vista, parece feito sob medida para um quebra-cabeça intrincado e sem soluções óbvias.
Segundo o próprio Blanc, talvez ele esteja diante de um mistério impossível de resolver. E, curiosamente, isso até pode ser verdade, mas não exatamente pelo motivo que imaginamos de início.
Isso porque o terceiro filme da franquia talvez apresente o mistério menos misterioso até aqui (desculpem o trocadilho). A morte acontece à vista de todos, em um cubículo que sugere algo realmente impossível. No entanto, logo de cara, o próprio investigador deixa claro que existem várias explicações plausíveis para o ocorrido; o desafio não é saber se há uma resposta, mas qual delas é a correta.
Inclusive, para o público mais atento — e acostumado a observar os detalhes desse tipo de narrativa — alguns indícios da resolução acabam se tornando relativamente evidentes ao longo do caminho.

O que poderia soar como um problema — a simplicidade do mistério — é justamente onde reside a maior virtude do filme. Não é a solução do crime em si que sustenta o grande conflito dramático, mas sim o que os personagens decidem fazer com o poder da informação quando ela pode moldar crenças, afetar a comunidade e alterar vidas.
Rian Johnson coloca a religião e sua influência direta na vida das pessoas sob escrutínio. Logo de início, somos apresentados ao embate entre Monsenhor Wicks (Josh Brolin) e Padre Jud (Josh O’Connor). Wicks surge como um líder religioso autoritário, que governa sua comunidade de forma quase agressiva, utilizando o poder institucional da Igreja para manipular e controlar seus fiéis. Já Jud chega como uma figura mais progressista, enxergando a religião como um instrumento de libertação por meio da fé.

Esse conflito inicial serve para posicionar Padre Jud como o principal suspeito do crime, sobretudo por seu passado ligado à violência. Antes de ingressar na vida religiosa, Jud foi um lutador, alguém que resolvia conflitos através da força física — o que reforça as desconfianças da comunidade e do próprio espectador.
Em contraste, o Monsenhor Wicks teve toda a sua trajetória moldada dentro da Igreja. Neto do fundador da congregação, cresceu cercado pela estrutura religiosa e, mesmo que sua mãe não tenha seguido esse caminho, a fé sempre foi o eixo central de sua formação e identidade.
A partir desse embate, Rian Johnson nos apresenta o primeiro grande conflito temático do filme: uma crítica direta à forma como a religião pode ser instrumentalizada. De um lado, um padre moldado pela violência, cheio de dúvidas e raiva contida, mas que busca a fé como caminho de redenção. Do outro, um líder criado na certeza absoluta da doutrina, que transforma a religião em ferramenta de opressão e controle.
Afinal: qual é o verdadeiro papel da religião? Liberdade ou domínio?
E então, o Monsenhor Wicks morre.
Mais uma vez, somos apresentados a vários personagens, todos com algum tipo de relação com o falecido e com a história daquela comunidade. Ainda assim, em Vivo ou Morto, o mistério é o menos complexo de toda a franquia. Mesmo com a presença de uma reviravolta, a explicação final é a mais direta entre os filmes até agora.
O acesso ao corpo, o que acontece com ele e a forma do assassinato são tratados de maneira relativamente comum, sem grandes invenções narrativas.
No entanto, quando Blanc chega às respostas, o filme retoma com força sua discussão central sobre fé. A revelação — ou a escolha de ocultá-la — pode transformar completamente a vida daquelas pessoas e aquilo em que elas decidem acreditar. Sem entrar em spoilers, as escolhas finais de Rian Johnson para seus personagens são corajosas e profundamente coerentes.
Daniel Craig, além de protagonista, funciona como o fio condutor dessa reflexão moral. Ainda assim, é Josh O’Connor quem rouba a cena. O personagem mais complexo e melhor desenvolvido do filme, e uma atuação que comprova que o ator entrega excelência mesmo sem alarde — algo já esperado por quem o acompanha desde The Crown.
Entre os fiéis da congregação, Glenn Close, como Martha Delacroix, representa de forma clara o impacto que a Igreja exerce sobre seus seguidores. Ainda que o filme toque na influência da instituição sobre todos, muitos desses conflitos acabam ficando na superfície, sem tempo suficiente para maior aprofundamento.

No fim das contas, Rian Johnson talvez entregue o filme mais ambicioso da franquia em termos de discurso. É o que mais se afasta do mistério puro para discutir poder, fé, controle e responsabilidade moral. Mesmo que o primeiro ainda seja meu favorito, a verdade é simples: o diretor acertou mais uma vez.
