Crítica | Amores Materialistas: Entenda a farsa romântica de Celine Song

O mais recente filme de Celine Song, Amores Materialistas, em cartaz nos cinemas, chegou cercado de expectativa após o grande sucesso de Vidas Passadas (2023), indicado ao Oscar. A cineasta, que conquistou público e crítica com sua delicadeza narrativa, retornou com uma proposta que, à primeira vista, poderia soar como apenas mais uma variação do dilema clássico entre amor e dinheiro.

Em um mundo regido pelo capital, pela ânsia de ascensão e pela estabilidade financeira como sinônimo de felicidade plena, Song propõe refletir sobre “escolhas”. Mas, ao contrário do que parece, o filme não se limita ao contraste entre paixão e segurança material, pois o que realmente entra em pauta é a dinâmica de poder dentro de uma relação.

Crédito: Sony Pictures

E é nesse paradoxo que surge o dilema central. Lucy (Dakota Johnson) é uma casamenteira, alguém que trata o amor como algo real e palpável. Seu trabalho, criar combinações ideais entre casais a partir de informações e expectativas, parte de uma lógica fascinante, a ideia de que o amor pode ser planejado e encontrado racionalmente. Porém essa lógica é construída sobre filtros cruéis como altura, juventude, beleza, ausência de calvície nos homens e, acima de tudo, dinheiro. O amor, nesse universo — e no nosso, não se mede por afinidades ou afetos, mas por atributos que reforçam status.

A grande oportunidade desperdiçada por Song é justamente não explorar esse recorte a fundo, que poderia revelar como mulheres são suscetíveis a essa dinâmica, presas em sistemas que, mesmo disfarçados de igualitários, as colocam vulneráveis diante do outro. O problema de Amores Materialistas não é o conceito em si, mas a forma como Celine Song falha em desenvolvê-lo além do superficial. O que poderia ser uma reflexão adulta e sofisticada acaba soando juvenil e hollywoodiano demais.

Crédito: Sony Pictures

O longa até sugere que, à medida que crescemos, entendemos que uma relação não se sustenta apenas com paixão, mas também com companheirismo e sobretudo com aquilo que o outro pode oferecer em termos de construção de vida. Lucy vende essa ideia em seu trabalho, mas cai na própria armadilha quando conhece Harry (Pedro Pascal), bonito, charmoso e absurdamente rico, um verdadeiro “unicórnio”. Ela sente o desconforto de estar diante de alguém que tem tudo, o que pode ser intimidante diante de uma sociedade machista e patriarcal. Lucy não está errada em temer, mas Celine Song não aprofunda a complexidade desse sentimento nem as implicações que ele carrega.

Nesse vazio, ressurge seu ex, John (Chris Evans), um ator fracassado, sem dinheiro, preso a um apartamento dividido com outros adultos igualmente ferrados. Ele não oferece futuro estável nem paixão arrebatadora, mas dá a Lucy algo que ela percebe como indispensável: familiaridade e segurança emocional. Ao lado dele, ela mantém o protagonismo na relação. Ela entende que sempre terá algum domínio sobre aquele homem que a ama, mesmo quando se mostra egoísta, e essa certeza lhe dá mais conforto do que o brilho de um romance com o homem perfeito e rico.

Crédito: Sony Pictures

Essa lógica desconfortável também reflete uma verdade dura do cotidiano: não é fácil fazer a paixão sobreviver às dificuldades financeiras. É por isso que tantas histórias de amor no cinema e na literatura recorrem à fantasia do milionário salvador que consegue resolver todos os dilemas financeiros da “mocinha”. Song tenta expor a vulnerabilidade escondida sob esse clichê, mas tropeça na sua própria crítica. Ao invés de mergulhar nesse conflito complexo, a diretora se perde em personagens rasos e diálogos constrangedores. Lucy ganha mais profundidade pela conexão entre sua profissão e suas escolhas pessoais, mas John nunca convence, enquanto Harry funciona quase como um adorno narrativo, bonito demais para ser real e esquecível ao ponto de perder espaço para um fantasma romântico que prende mulheres há gerações.

Se Song tivesse dado menos espaço à caricatura dos homens ao redor de Lucy e mais atenção à realidade implacável de sua profissão, o filme teria elevado sua história: não se trata apenas de paixão ou estabilidade material, mas da certeza de conhecer o outro, de manter algum domínio sobre ele e de se proteger em um mundo que insiste em subjugá-la. Esse ponto, que poderia ser brilhante, é soterrado por um final feliz em tom de conto de fadas, incapaz de sustentar a coragem de solidificar sua própria crítica.

Celine Song parece recuar diante da verdade incômoda: amor, por si só, não basta. No mundo em que vivemos, dependente do dinheiro para garantir o básico — comida, teto, dignidade —, insistir na fantasia de que o amor vence tudo soa cruel. O olhar cínico que a diretora tenta costurar em sua protagonista se dissolve diante de seu próprio coração romântico, ainda preso ao conforto das histórias que reforçam a velha ilusão de que o sentimento puro sobrevive a qualquer adversidade.

Crédito: Sony Pictures

Mas a realidade explode mesmo em um final que tenta se esconder: o amor não é altruísta, nunca foi. Desde os “tempos das cavernas”, o que move o ser humano é a sobrevivência, e as relações — mesmo as sentimentais — funcionam como ferramentas para isso.

Nós continuamos reduzidas a objetos com prazo de validade. Optar pelo racional é visto como anomalia, internalizada como culpa. O casamento idealizado não é sobre amor, mas sobre conquistar uma armadura disfarçada de felicidade, um refúgio onde corpo e alma buscam proteção contra a violência constante de um mundo que ainda mede o valor feminino pelo que se oferece, e não pelo que se é. Para se sentir minimamente livres, as mulheres ainda precisam se submeter a algemas de ouro.

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