Documentário em três partes expõe os efeitos sociais e políticos do furacão Katrina e ecoa tragédias recentes no Brasil.
Há 20 anos, o furacão Katrina devastou Nova Orleans e entrou para a história como uma das maiores tragédias dos Estados Unidos. Mas o que a série documental Katrina: Depois da Tempestade, da Netflix, dirigida por Geeta Gandbhir, Samantha Knowles e Spike Lee e produzida por Alisa Payne, escancara é que o desastre não foi apenas natural. Ele expôs de forma brutal a desigualdade social, racial e econômica de um país que, diante da catástrofe, escolheu quem poderia se reerguer e quem seria deixado para trás.

Dividida em três episódios, a produção não se limita a reconstituir o impacto imediato do furacão em 29 de agosto de 2005. Seu objetivo vai além de mostrar como o Katrina atingiu Nova Orleans, na Louisiana, próxima à costa do Golfo do México: a série documental também expõe as consequências dias e anos após o desastre.
O episódio inicial apresenta os dias que antecederam a tragédia, quando as lideranças locais demoraram a ordenar a evacuação obrigatória, deixando milhares sem opção de saída e vulneráveis ao furacão. O segundo episódio mostra o colapso da cidade horas e dias depois do Katrina, em especial o estádio Superdome, onde milhares de pessoas se abrigaram e permaneceram por muito tempo, sendo abandonadas em condições precárias. Já o episódio final, dirigido por Spike Lee, funciona como um tributo às vítimas e à cultura de Nova Orleans, ao mesmo tempo em que denuncia de forma contundente a gentrificação, a exclusão social e o trauma coletivo que ainda persistem.
Além da força de seu conteúdo, Katrina: Depois da Tempestade impressiona pela qualidade da produção. A montagem equilibra imagens de filmagens de moradores da época e depoimentos emocionantes de sobreviventes. O uso da música e de elementos culturais de Nova Orleans dá ainda mais peso à narrativa, lembrando que a cidade não é apenas palco de uma tragédia, mas também de resistência e identidade coletiva.

O documentário se torna, assim, um espelho incômodo não apenas para os Estados Unidos, mas para o mundo inteiro. Afinal, tragédias como essa continuam a se repetir, cada vez mais intensas devido às mudanças climáticas, mas ainda mais devastadoras pela ausência de políticas públicas eficazes. O resultado é sempre o mesmo: os mais pobres pagam o preço mais alto.
Assistir à série em 2025 é particularmente doloroso para nós que vivemos recentemente as enchentes no Rio Grande do Sul em 2024. Em Nova Orleans, a população negra e pobre foi a mais atingida, vivendo nas áreas mais baixas da cidade e à mercê das inundações, enquanto a população mais rica, em sua maioria branca, ocupava regiões mais altas, escapando em grande parte dos danos. Essa divisão revela disparidades históricas no acesso à moradia. No Sul do Brasil, vimos algo semelhante: famílias de baixa renda que moravam em áreas de risco foram as que mais foram afetadas, mostrando como a desigualdade habitacional amplifica o impacto dos desastres naturais.

Outro ponto em comum é o trauma prolongado. Em Nova Orleans, crianças cresceram com marcas profundas, famílias foram separadas e comunidades inteiras nunca se reergueram totalmente. No Rio Grande do Sul, ainda é cedo para medir a extensão das cicatrizes, mas já se percebe que a reconstrução enfrenta grandes desafios. Muitas famílias perderam tudo e dependeram e ainda dependem de abrigos temporários ou da ajuda humanitária e governamental. Além disso, a negligência do poder público em implementar ações preventivas e de melhoria da infraestrutura deixa a população vulnerável, enquanto enchentes se tornam cada vez mais frequentes no Rio Grande do Sul.
Confesso que, para quem viveu de perto o impacto das enchentes no RS, assistir à série foi um gatilho. A sensação de abandono, a desumanização dos mais pobres e a exploração política e econômica do sofrimento são pontos de contato dolorosamente reais entre as duas catástrofes.
É impossível sair da experiência sem sentir indignação. Acima de tudo, funciona como um alerta urgente sobre como o abandono de comunidades vulneráveis podem transformar desastres naturais em tragédias humanas prolongadas e irreversíveis.

Katrina: Depois da Tempestade não é apenas um registro histórico, mas um trecho do retrato social e político contundente sobre como os governantes lidam com crises ambientais, deixando vidas de pessoas pobres e negras sempre em segundo plano.
